COMO A ISLÂNDIA FEZ UMA NOVA CONSTITUIÇÃO USANDO O FACEBOOK
Entrevista concedida a Valquíria Vita, publicada em edição impressa da revista Superinteressante em agosto de 2013
CUTUCARAM A CONSTITUIÇÃO
Enquanto
no Brasil manifestantes saíram do Facebook e foram para a rua, na
Islândia eles saíram às ruas e depois voltaram para reescrever a
Constituição no próprio Facebook.
O cientista político islandês Eiríkur Bergmann conversou com a Super sobre o processo.
Até cinco anos
atrás, a Islândia é que parecia estar deitada em berço esplêndido: todo
mundo sabia ler, 95% da população tinha acesso à internet, a economia ia
muito-bem-obrigado e não existia desemprego. Só que durante a crise
financeira que tomou conta do mundo em 2008, o pequeno país nórdico
(pequeno mesmo, 82 vezes menor que o Brasil) passou por uma barra tão
pesada que a situação chegou a ser descrita pelo FMI como uma “crise
financeira de proporções catastróficas”.
Os maiores
bancos da região faliram e a moeda local sofreu uma desvalorização de
80% em relação ao euro. A taxa de desemprego aumentou nove vezes, a
dívida do país chegou a 900% do PIB e, bom, as pessoas começaram a
empobrecer.
Os islandeses
deram uma de argentinos e foram às ruas protestar batendo panelas quando
o governo quis aplicar medidas exigidas pelo FMI em troca de uma ajuda
financeira bilionária. Bateram tanta panela que o primeiro-ministro foi
obrigado a renunciar, e novas eleições foram convocadas. Mesmo assim,
eles não ficaram satisfeitos.
De repente, os
protestos já não eram mais contra as medidas de austeridade, mas contra
tudo que parecia errado no país (soa familiar?). No caso da Islândia, o
que o povo realmente queria era uma nova Constituição. Foi aí que o
Facebook entrou na jogada.
A rede social
foi a principal plataforma escolhida pelos islandeses para recolher
contribuições para a nova Constituição. O processo foi mediado por um
conselho de 25 voluntários apartidários, que postava os textos no
Facebook depois de cada reunião para que o resto da população pudesse
debater a respeito.
E foi assim que a Islândia ficou conhecida mundialmente por ter elaborado a primeira Constituição crowdsourced da
história. O texto final passou por referendo e foi aprovado por dois
terços dos islandeses em 2012. Está até agora aguardando aprovação do
Parlamento (Brasil e Islândia também têm suas semelhanças), mas já
serviu de exemplo para destacar a força das redes sociais na construção
de uma nova forma de democracia.
Um daqueles 25
conselheiros, o cientista político Eiríkur Bergmann, diretor do Centro
de Estudos Europeus da Bifröst University, enfrentou uma viagem de 24
horas da Islândia para o Brasil para fazer uma palestra sobre o futuro
dos Estados democráticos. Aproveitou para falar sobre o uso da
tecnologia pela democracia e para dar sua opinião sobre a viabilidade de
um processo parecido por aqui.
Como vocês receberam sugestões para a nova Constituição?
Por alguma
razão, todos na Islândia estão no Facebook, então esse foi o principal
portal. Criamos uma página onde as pessoas podiam mandar sugestões e
comentar, e nos dividimos em comitês para analisar os assuntos.
As pessoas
também mandaram sugestões pelo Twitter, e-mail, correspondências,
ligaram e vieram pessoalmente até nós. A decisão que tomamos foi que não
importava de que maneira elas viriam, só queríamos que participassem.
Se quisessem mandar um pombo com uma mensagem, podiam fazer isso também.
Recebemos 3.600 sugestões formais.
Como foi tomada a decisão de criar um canal no Facebook para que a população se manifestasse?
Existiram
muitos motivos para isso. Um foi que existia alguma animosidade entre o
conselho eleito e o Parlamento, e sabíamos que isso poderia ser uma
estratégia para ter o apoio do público. E como ter o envolvimento do
público? Botando no Facebook.
Entre os 25
conselheiros representantes, houve quem dissesse que devíamos desligar o
celular, fechar a internet e apenas escrever o texto e trazer ao
público quando estivesse completo. Mas decidimos fazer completamente o
oposto.
Nosso time
técnico cuidou de todas as portas de entrada de opinião. Convocamos toda
a população a participar. Postamos até nossos telefones particulares
para as pessoas ligarem se quisessem. Postávamos todo o nosso trabalho
online imediatamente para as pessoas debaterem. E desse debate tirávamos
a vontade do público e integrávamos no próximo round de postagens.
E as pessoas levaram isso a sério?
Essa foi a
parte maravilhosa disso. Normalmente, na Islândia, temos discussões
acaloradas sobre tudo, as pessoas atacam as gargantas umas das outras
nos comentários, temos discursos muito negativos e comentários muito
duros e pessoais.
O que as
pessoas já postaram sobre mim, meu deus! E isso acontece com todo mundo.
Mas, com esse assunto, por alguma razão, ninguém fez comentários
negativos. A questão é que todos queriam causar impacto. Quando você
convida as pessoas, tem de escutar o que elas têm a dizer.
E elas levaram a
sério porque sabiam que o que dissessem também seria levado a sério.
Deixamos claro para elas que seus comentários realmente importavam, e
como resultado tivemos comentários muito mais responsáveis.
Quando você dá
poder às pessoas, e diz a elas que suas vozes realmente importam, elas
tomam mais cuidado com o que dizem. Eles sentiram que estavam
participando de verdade, não apenas assistindo à recuperação da
Islândia. Isso teve efeito de cura na sociedade. Foi um jeito
construtivo de avançar, em vez de ficar nos protestos.
Se o povo não tivesse sido parte desse processo, você acha que a Constituição teria sido diferente?
Sim. Por
exemplo: capítulos importantes sobre recursos naturais e direitos
humanos sofreram grande impacto com a participação do público. Se a
Constituição tivesse sido criada pelos parlamentares, teria sido mais
conservadora.
O quanto a crise econômica que afetou a Islândia influenciou esse movimento?
Em 2008, a
Islândia foi a primeira a entrar em colapso. Nossos bancos foram à
falência em apenas uma semana. Isso foi um choque e houve um grande
senso de crise. E crises abrem espaço para discursos políticos, fazem
surgir novos pensamentos. Além disso, tivemos uma sociedade receptiva,
homogênea o suficiente para compreender algo assim, e tecnológica o
bastante para que as pessoas participassem.
Além da crise, o que mais colaborou para que esse projeto desse certo na Islândia?
Foi uma
vantagem sermos um país pequeno, onde é fácil conseguir que as pessoas
se envolvam. Somos poucos, mas o suficiente para causar impacto, se
quisermos. Fora isso, mais de 95% da população tem internet e 100% é
alfabetizada. Os islandeses são educados, têm acesso à mídia.
Uma iniciativa como essa poderia funcionar em um país maior?
O processo
aconteceria de um jeito diferente, mas poderia funcionar, sim. Acho que o
que vale é o convite para que as pessoas participem, que é quase mais
importante do que elas participarem de fato. Também é fundamental saber
que as necessidades são diferentes em lugares diferentes. Você não pode
forçar uma mudança em uma sociedade que não precisa dela. Tem de haver
uma demanda por mudanças.
Isso daria certo no Brasil?
Sim, talvez
mais certo do que em outros países, porque vocês têm uma herança muito
interessante de participação popular. Claro que a maioria não
participaria, mas uma parte, sim. Eu acredito que esse tipo de exercício
vai ser cada vez mais comum.
"Na
Islândia, temos discussões acaloradas sobre tudo, as pessoas atacam as
gargantas umas das outras nos comentários, temos discursos muito
negativos e comentários muito duros e pessoais" (Foto: Getty Images)
Há quem chame essa de uma nova forma de democracia direta por meio da internet. Você concorda?
A nova
Constituição foi esboçada por 25 pessoas, que receberam sugestões e
impactos do público em geral. Então houve um filtro, isso não é
democracia direta.
Mas o senhor acredita que esse é o caminho? Transformar pela internet?
Estamos em um
ponto de virada no que diz respeito ao desenvolvimento da democracia.
Agora, estamos nos movendo para uma forma mais participativa de
democracia.
Eu sinto que
essa é a primeira vez que a tecnologia pode ser usada democraticamente.
Temos essa tecnologia há anos, mas não tínhamos uma população pronta
para isso. Até agora. Quando começarmos a ver esses exemplos se
acumulando, vai ser mais fácil dar um passo para frente e realmente
integrar mecanismos participatórios na tomada de decisão.
Eu acredito que
organismos participativos são importantes para aumentar processos
democráticos representativos tradicionais, trazendo a tomada de decisões
de volta para as pessoas. As mudanças estão vindo, quer você goste ou
não, concorde ou não.
O desafio é se
organizar para que essas mudanças sejam construtivas. Não sabemos o que
vai acontecer. E isso pode ser usado para o bem ou para o mal.
link original: http://super.abril.com.br/cotidiano/cutucaram-constituicao-759921.shtml
link original: http://super.abril.com.br/cotidiano/cutucaram-constituicao-759921.shtml
Nenhum comentário:
Postar um comentário