quarta-feira, 19 de março de 2014

LADO B _ Léa Fernandes Signori

Perfil publicado na Revista Acontece, de Caxias do Sul, em março de 2014. Link original aqui 






Léa Fernandes Signori
Por Valquíria Vita

A psicanalista que sempre encontra tempo para os 70 idosos do Lar da Velhice São Francisco de Assis



Léa Fernandes Signori ainda se lembra da data. Era 27 de setembro. Nesse dia, um acontecimento antes impensável ocorreu no Lar da Velhice São Francisco de Assis. Dois idosos que haviam se conhecido e começado a namorar no Lar, se casaram.
O casamento só aconteceu graças à Léa, psicanalista e presidente do Lar da Velhice. João tinha 84 anos, Olinda, 88. Os dois, já viúvos, haviam procurado Léa há algum tempo e feito o pedido que a presidente nunca tinha recebido. Naquele dia, Léa não apenas autorizou e organizou todo o casamento, que ocorreu na capela do Lar, como foi madrinha dos noivos. "A noiva quis buquê, vestido e tudo", conta Léa, que a ajudou a se vestir em um dos quartos do asilo, garantindo que a porta estivesse fechada para que o noivo não a visse antes do tempo. Foi enquanto se vestiam que Olinda largou uma pergunta que pegou Léa desprevenida: "Onde vai ser a nossa lua de mel?". Léa não tinha pensado nisso. Foi, talvez, o único detalhe do casamento que ela havia esquecido de planejar.
Imediatamente, Léa ligou para um hotel de Caxias, que emprestou um quarto para a lua de mel de João e Olinda (que durou uma noite). Léa também arranjou tudo para que a kombi do Lar da Velhice levasse os dois até lá depois do casamento, e os trouxesse de volta na manhã seguinte. "Essa talvez tenha sido a situação mais hilária que me aconteceu", conta ela.
Três anos depois do inédito casamento, João ficou muito doente. Olinda o cuidou com tanto carinho que até dava comida em sua boca todos os dias. Quando finalmente não teve mais forças, João faleceu, sucumbindo à doença e à idade. Uma semana depois, após não suportar mais a dor da perda, Olinda também faleceu.
São poucas as pessoas que podem contar uma história como essa. Léa é uma delas. Há 25 anos ela convive toda a semana com idosos que compartilham com ela seus sentimentos e suas histórias de vida. Algumas são de se alegrar, mas muitas outras são de fazer amolecer o coração até dos mais fortes. Tantos anos trabalhando tão próxima dos velhinhos ensinaram a Léa algumas lições. Uma delas é que a morte é sim inevitável e, justamente por isso, o que importa é fazer o bem pelas pessoas enquanto elas ainda vivem. E essa parece ser a missão de vida dela: tornar os últimos anos de vida desses velhinhos, que já não estão mais na companhia de suas respectivas famílias, o mais agradável possível. "Claro que a gente sofre, a morte sempre é difícil. Mas eu prefiro ver pelo lado de que precisamos ser atenciosos e suprir essas necessidades enquanto ainda é tempo. Nem que essa necessidade seja uma blusinha, uma tiara", explica Léa.
Essa relação de amor e voluntariado com o Lar da Velhice São Francisco de Assis começou quando Léa era estagiária de psicologia comunitária, há 25 anos. "Vinte e cinco anos é uma vida", brinca. Entre todos os lugares que ela poderia ter feito o estágio, a jovem psicóloga optou pelo Lar da Velhice, já que desde que tinha 5 anos de idade gostava de conversar com pessoas idosas.
Durante a faculdade, na Universidade de Caxias do Sul, ela já sabia que quando concluísse o curso, dedicaria seu tempo a trabalhar com os velhinhos. E foi, de fato, o que aconteceu. Léa só não imaginava que a experiência transformaria sua vida.
Após a especialização de Psicanálise no Centro de Estudos Lacaneanos, em Porto Alegre, Léa entrou para o Lar, e hoje já está há 13 anos à frente da instituição como presidente, trabalho que também faz voluntariamente.
Ela vai até a casa de repouso todas as terças e quintas-feiras. Isso só não acontece em casos muito raros - quando ela tira férias, ou então quando está muito doente. Caso contrário, nada impede que Léa visite os 70 idosos - cuja relação é tão próxima, que ela sabe o nome e a história de cada um deles. "Eu já ouvi que sou o sol, um anjo, ja fui chamada de mãe… Eles pedem para que eu nunca saia de lá. Por isso digo que não tenho só dois filhos, mas 72", diz.
Os dois filhos de Léa também são voluntários no Lar. Priscila, como farmacêutica, e Fernando, como dentista. Até o genro, que é ortopedista, participa. "Esse é um legado que eu quero deixar para eles", diz Léa.
Alem de dar atenção aos velhinhos a cada visita, o cargo de presidente de Léa exige que ela tome conta de diversas funções administrativas, como buscar recursos, doações e parcerias para a instituição, afinal, apenas idosos carentes vivem no Lar, que e uma entidade filantrópica. "Esse é um trabalho que eu considero primordial na minha vida hoje", conta.
Durante a gestão de Léa como presidente, foi erguido o Recanto das Laranjeiras, conquista que ela considera a mais significativa. O local foi construído em 2013 com recursos da venda de um terreno que o Lar da Velhice possuía e com grande ajuda da comunidade. O Recanto é uma casa de repouso particular, cujo objetivo é ajudar financeiramente o Lar da Velhice (além de suprir a demanda da sociedade, que precisava de mais uma casa de repouso). O que é arrecadado no Recanto é repassado para as despesas do Lar.
A nova instituição levou cinco anos para ser construída. "E foi toda feita com ajuda da comunidade. Considero uma gestação de cinco anos", diz Léa, referindo-se à quantidade de trabalho que teve até finalmente ver uma nova casa de repouso, com mais de dois mil metros quadrados, finalizada. O dia da inauguração, quando Léa discursou para a comunidade que ajudou na construção do Recanto, é, até hoje, considerado por ela, o ápice de sua realização como presidente. Na época, ela foi atrás de tudo para a construção da nova casa, desde o piso de parquê, até os funcionários que fariam parte da equipe. "Eu vi que a solução era arregaçar as mangas e ir buscar tudo", conta Léa. "Tem que ter disponibilidade e conhecer pessoas."
Léa também foi responsável por mudanças dentro do próprio Lar da Velhice. As inovações podem parecer pequenas, mas fizeram grande diferença na vida dos idosos que passaram por lá. Antes, quando um deles falecia, por exemplo, não era costume que um padre visitasse o Lar. Hoje, graças à Léa, cada vez que isso acontece, um frei Capuchinho é chamado.
Outra mudanca é que nenhum idoso precisa ficar no Lar contra sua vontade. Léa decidiu isso depois de acompanhar o caso de uma senhora que não estava feliz na casa de repouso. Após muito procurar, ela encontrou uma sobrinha da idosa em Santa Catarina, para onde ela se mudou. "Eu pensei que não devia mais permitir que eles ficassem lá se eles não quisessem. Eu sempre achei um desrespeito eles não poderem optar. Essa idosa poderia ter entrado em depressão, e sabemos que a depressão abre portas para outras doenças, além de fazer muitas vezes que a pessoa vá antes do tempo", diz.
Além disso, Léa estipulou os passeios regulares com os velhinhos, ao perceber que na reclusão da casa de repouso eles haviam perdido totalmente o contato com a vida lá fora. "Onde eles querem passear, a gente leva. Eles já foram para Ana Rech, para as piscinas do Juventude… Mas normalmente, o que eles querem mesmo é ir para Caravaggio."
Léa também faz com que todos os velhinhos recebam um parabéns para você cantado no dia de seus aniversários. Uma vez por mês, uma doceria de Caxias doa uma torta para isso. Além dos aniversários, eles fazem festas de Páscoa, Natal, Carnaval, além de bailes. "O meu desejo era transformar o Lar da Velhice em um lar, e não em um depósito."
Hoje, só não tem TV no quarto quem não quiser, segundo Léa. A história das TVs começou com dona Madalena, uma idosa que fazia bonecas à mão. Um dia ela perguntou a Léa se conseguiria comprar uma televisão se vendesse todas as bonecas. "Então eu ajudei ela fazer isso. Com o dinheiro, é claro, não deu para comprar a TV. Mas eu fui numa loja e comprei com meu dinheiro, e dei a ela dizendo que havia comprado com o dinheiro das bonecas. A autoestima dela aumentou muito, ela mostrava para todo mundo aquela televisão", relembra Léa.
Hoje, a presidente não precisa mais comprar televisões para os velhinhos com o dinheiro do próprio bolso. Todas as outras depois dessa vieram de doações.
O interessante é que Léa parece ter um jeito e uma solução para tudo. Na época do casamento de João e Olinda, quando todos perguntavam "mas e se agora todos quiserem casar?", ela dizia calmamente "bom, então, nós os casamos"; na época da história da televisão, quando perguntavam "e se todos agora quiserem uma televisão?", a resposta dela era "então vamos conseguir 70 televisões".
Parece ser simples para Léa explicar por que o voluntariado é parte tão importante de sua vida. "Sei que isso me faz bem", ela diz. Não só porque eles são idosos, explica ela, mas porque sabe que eles precisam de suporte psíquico. "Ver que o meu trabalho é importante para eles, ver que eu consigo fazer eles viverem melhor, com mais qualidade de vida, sem tristeza, sem viver a melancolia da morte e podendo se dedicar aos pequenos e cotidianos prazeres, como diz Freud, é muito gratificante", diz Léa, uma admiradora do austríaco criador da psicanálise, cujo retrato está exposto em seu escritório.
Léa é psicanalista e, apesar das atividades do Lar, consegue atender até 12 horas por dia em seu consultório em São Pelegrino. Além de Freud, um outro quadro se destaca no aconchegante consultório de Léa: o certificado de Cidadã Caxiense, que recebeu em 2008. Natural de Bom Jesus, Léa, filha de Eduino e Cléa Fernandes, veio a Caxias aos 17 anos de idade para estudar. O fato de não ter nascido aqui já lhe rendeu histórias engraçadas, como quando concorreu a Miss Caxias, aos 18 anos de idade. "Um dos jurados disse para o meu marido, que na época era namorado, que eu só não ganhei porque eu não era de Caxias", diz, mostrando a foto de quando posou para o concurso, na época em que estava ainda cogitando a ideia de se tornar psicóloga e, mais tarde, psicanalista e voluntária.
Léa, hoje com 63 anos, está casada com o empresário João Signori, há 38. Em 2015, ela deixa de ser presidente do Lar da Velhice, mas segue com o voluntariado. "Até o fim dos meus dias."

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