O padre, que tem o ‘servir com alegria’ como lema, já sabia
de sua vocação ainda na infância
Por Valquíria Vita
“O corpo de Cristo”, diz o padre,
ao apresentar a hóstia aos fieis. Ele prossegue, com o cálice: “O
sangue de Cristo”. A cena ocorre na década de 60, em uma casa em Bento
Gonçalves, onde a hóstia é uma bolacha Maria; o vinho, Ki-Suco de uva;
os fieis, as crianças do bairro; e o protagonista, um menino que imitava
o ritual assistido na igreja. Era esta a brincadeira preferida de Renato Ariotti, que mostrava, desde cedo, sua vocação para ser padre.
Simpático, entusiasmado e alegre são palavras que rapidamente definem Renato, padre
na paróquia Santa Catarina, em Caxias do Sul. “O lema que escolhi para a
minha vida é um trecho do Salmo 99: ‘Servir com alegria’”, conta ele,
sentado em sua sala de trabalho na casa paroquial. “Passar alegria para
as pessoas no mundo de hoje, com tantos problemas e dificuldades, é
muito importante. Não é viver no mundo da lua: é ter os pés no chão, ao
mesmo tempo em que se pode ajudar as pessoas a terem ânimo. Porque com
ânimo é mais fácil sobreviver”.
Padre Renato
é do time de otimistas que conseguem ver uma luz até mesmo nas
situações de dor. Este otimismo é crucial, principalmente porque ele
realiza sepultamentos quase todos os dias — e é dele a função de
confortar parentes e amigos com palavras.
É descenessário perguntar ao padre
se ele gosta da vida que escolheu — a satisfação com o trabalho que
desempenha diariamente está em suas falas e em seu olhar. A recompensa é
ver essa felicidade transmitida para as outras pessoas. “Noto que as
pessoas saem contentes, saem bem aqui da igreja, isso é importante para
um padre.”
Uma longa trajetória
Filho de Francisco Ariotti e Irdes Milani Ariotti, Renato
nasceu em 15 de abril de 1961, em Bento Gonçalves. Além das
brincadeiras de rezar missa, passava tempo com a irmã, Márcia, e com os
amigos da rua. “Já tinha em meu coração esse desejo de ser padre. Quando eu tinha 14 anos, eu pegava santinhos e distribuía para os doentes no hospital”, conta o padre que, com essa idade, também aprendeu a tocar violão.
Renato
frequentou a escola das irmãs do Sagrado Coração de Jesus até a oitava
série. Aos 15 anos, teve de deixar Bento Gonçalves para iniciar
oficialmente a busca pela carreira religiosa, no Seminário Nossa Senhora
Aparecida, em Caxias. Sair de casa pela primeira vez foi muito difícil,
lembra ele. Demorou até que se acostumasse sem a presença constante dos
pais, da irmã e dos amigos. Mas logo, a rotina atribulada com aulas do
seminário e as aulas de catequese que ministrava, amenizou a saudade de
casa. Com isso, ele começou a se envolver com grupos de jovens e
atividades de final de semana nas comunidades.
Renato
cursou Filosofia na UCS, seguida de Teologia na PUC. “Na PUC, estudava
de manhã e de tarde. E notava que, ao meio dia, tinha sempre um grupo de
funcionários que ficava em baixo das árvores. Juntamente com outro
colega, Hélio, eu arrumei um violão e nós começamos a ficar em baixo das
árvores com eles, cantávamos e conversávamos. E os professores ficavam
muito impressionados que nós conhecíamos os funcionários pelos nomes!”,
relata.
Após a ordenação, em 1986, Renato
teve experiências em vários locais: trabalhou no Santuário de
Caravaggio, deu aulas no Seminário Aparecida, foi promotor vocacional
(visitava os jovens das paróquias para inspirá-los a se tornarem padres),
atuou na Paróquia Santos Apóstolos, em Cazuza Ferreira e, atualmente,
está há sete anos na paróquia Santa Catarina – comunidade que ele sabe
que, daqui a algum tempo, também terá de se despedir e partir para uma
próxima igreja.
Essas despedidas são sempre cheias de emoção. Ao sair da Paróquia Santos Apóstolos, conta o padre,
a comunidade de um dos bairros envolvidos, o Panazzolo, lhe presenteeou
com um acordeon. “E eu fico contente porque tem três pessoas que
disseram que se inspiraram em mim para aprender acordeon: o Mateus, o
Gabriel e a Poliana”, diz, mostrando as fotos dos três, que já foram
seus coroinhas. “Para meu padrinho musical”, diz o autógrafo no CD de um
deles, que hoje, aos 18 anos, faz parte de uma banda gaúcha.
O papeleiro Miguel, Scooby e Preta
Padre Renato
e o papeleiro Miguel dos Santos nunca se conheceram, mas os dois
possuem uma ligação muito forte. O momento mais marcante dos 30 anos de
sacerdócio de Renato – três décadas comemoradas
este ano – foi após a morte de Miguel, em 2012. Era um dia de setembro
e, como de costume, a secretária lhe avisou que havia um sepultamento
para aquele dia. O que chamou a atenção do padre
é que se tratava de um sepultamento de um papeleiro que havia sido
queimado por menores de idade. “Foi um enterro rápido e com pouca gente.
A comoção era mais dos jornais, por causa da notícia, do que
propriamente de quem estava ali, pois ele não tinha família”, conta. “E
quando fizemos o enterro desse homem, descobrimos que ele só tinha dois
amigos: os dois cachorros. E eles precisavam de adoção”, diz o padre, que levou os dois cães para viverem com ele na casa paroquial.
Os
cachorros, Scooby e Preta, vivem desde 2012 no pátio da casa, em uma
casinha doada pela comunidade, ao lado de um memorial criado pelo padre,
onde estão expostas algumas das notícias sobre a morte do papeleiro,
que virou notícia nacional. “Miguel vive”, diz o mural, próximo ao
carrinho que o papeleiro costumava levar pela cidade.
“Deste limão”, diz Renato,
referindo-se à situação, “saiu uma limonada”. Além de publicar um livro
chamado “Miguel”, para homenagear o papeleiro e promover a cultura da
paz, Renato aproximou-se de projetos da justiça
restaurativa, com quem criou um movimento chamado Círculos da Paz. Além
disso, aproximou-se de escolas, que trazem as crianças para visitar os
cachorros e conhecer o projeto, e criou vínculos com a Soama e com os
papeleiros. “Disso brotou todo esse trabalho pela paz. É uma pequena
sementinha.”
“Eu celebro junto”
Plantar sementes faz parte do trabalho de um padre – o que nem sempre é simples. O maior desafio hoje, conta Renato,
é conseguir levar a mensagem de Jesus em um mundo que é extremamente
técnico e individualista, o oposto do que Jesus pregava. “Sinto que
precisamos olhar para o outro não como concorrentes, mas como irmãos”.
Ensinamentos de Jesus fazem parte dos programas de rádio conduzidos pelo padre.
Um na rádio Viva, em que dá uma bênção às 7h55 da manhã aos domingos, e
outro na São Francisco, programa que apresenta há 20 anos. Todos os
dias, quem sintoniza na São Francisco às 5h55 da manhã pode escutá-lo no
Oração da Esperança. O programa, “feito no amor”, como diz o padre,
é gravado de um pequeno estúdio no próprio quarto e enviado para a
rádio. Mas nem por isso ele acorda mais tarde. “Acordo 5h45, levanto às
6h30 e faço minhas orações”, diz o padre que, no restante do dia se divide entre reuniões, aconselhamentos, conversas, celebrações, sepultamentos e missas.
Entre
os lazeres, além da música, adora jogar xadrez e canastra. “E procuro
caminhar sempre. Eu era mais gordinho, emagreci”, conta, tocando com as
duas mãos na barriga. Além disso, muita leitura faz parte do cotidiano
do padre, para garantir material para os sermões na igreja. “Tento trazer a palavra de Jesus para o dia a dia”, conta o padre
que tem, entre suas influências, São Francisco, Oscar Bertoldo e Dom
Paulo Moretto. Este último fez sua ordenação, o que é, até hoje, um dos
momentos mais felizes da trajetória de Renato.
“Outros aniversários de ordenação foram importantes também, além de
batizados e casamentos que me marcaram. Eu procuro viver o momento, não
só fazer a celebração por fazer. Celebro junto”, diz, acrescentando que,
muitas vezes, sofre junto também. Entre os momentos mais difíceis até
hoje, está o dia em que teve de realizar o sepultamento da mãe, há cinco
anos. “Porque, queira ou não, ser padre é ser
filho”, diz, relatando outros momentos tristes que também teve de
enfrentar – mesmo assim, mantendo o otimismo: “Com a benção de Deus, eu
olho para trás e digo: ‘Obrigado, Senhor! Porque em todos os momentos, a
gente pode aprender algo’”.
Texto publicado na revista Acontece de Julho de 2016.